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Crônicas |
Por Luiz Fernando
Veríssimo |
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ENQUANTO DURE
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Depois da separação veio
aquele momento difícil que é o da divisão das coisas. Tudo o que
eles tinham acumulado juntos, ou trazido das suas vidas
separadas para compartilharem, de repente, precisava ser
reidentificado como "Meu" ou "Seu".
Mas prática, como sempre, Taís já tinha tudo organizado quando José
Eduardo chegou no apartamento.
— Esta pilha aqui é das minhas coisas, essa pilha é das suas
coisas, esta caixa é para as coisas que vão fora.
— Me parece justo.
— Como, "justo"? Não tem nada a ver com justiça. O que é meu é
meu e o que é seu é seu. Isto não é redistribuição de renda.
— Me expressei mal. Desculpe. Não quis dizer "justo". Quis diser
"tá". De acordo.
— Se fosse uma questão de justiça, eu é que tinha que reclamar.
Sua pilha é muito maior do que a minha.
— Está certo, Taís.
— O que você tinha de papel velho ... Só de suplemento cultural
guardado para ler depois tem mais de um metro.
— Está bem, Taís!
— Você quer a Efigênia?
Era uma pequena escultura, um busto de mulher que ele apelidara de
Efigênia.
— Não, não.
— Você sempre gostou dela.
— Pode ficar.
— Alguma coisa da cozinha?
— Não.
— A mostarda?
— Não. Nada. Bom, talvez aquelas alcaparras italianas.
— Que alcaparras italianas?
— Aquele vidrinho. As alcaparras pequeninhas.
— José Eduardo, aquele vidrinho acabou há mais de um ano.
— É? Então não quero nada.
— Você quer examinar a minha pilha?
— Não precisa, eu ... Espera aí. Esse Vinícius de Moraes é meu.
— É meu.
— Não senhora. Tenho certeza de que é meu.
— É meu, José Eduardo.
— Me lembro claramente de ter comprado esse livro. Lembro até a
livraria.
— Eu ganhei esse livro, José Eduardo.
— De quem?
— Não me lembro.
— Arrá!
— Como, "arrá"?
— Arrá. A, erre, erre, a. Você não lembra porque não ganhou de
ninguém. O livro é meu.
— Taís não disse nada. Pegou o livro da sua pilha, irritada, e
abriu na primeira página.
— Está aqui. Tem até dedicatória. "Taís. Que o nosso amor seja
eterno enquanto dure. Um beijo carinhoso do..."
Ela parou. Ele perguntou:
— Quem?
Taís hesitou. Depois respondeu:
— Você.
— Eu?!
— Você me deu o livro. Vinte de outubro de 86. Nós éramos
namorados.
Ele pegou o livro das mãos dela, leu a dedicatória, depois fechou o
livro e recolocou na pilha. Os dois ficaram em silêncio,
emocionados. Ele foi olhar pela janela, para disfarçar. Ele
espiou dentro da caixa de coisas que iam fora, só para ter o que
fazer.
— Taís! Meu time de botão!
— O quê?!
— Você ia botar meu time de botão no lixo!
— Francamente, José Eduardo. Estava no fundo do armário.
— Olha aqui! Olha aqui!
Ele tinha resgatado um botão de dentro da caixa e o brandia como
prova acusatória.
— O Rivelino! Você ia jogar fora o Rivelino! |
Novas Comédias da
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